“Mas não omitirei nada do que minha alma concebeu daquela tua escrava. Direi os dons não dela, mas teus nela. Com efeito, não se fez a si mesma nem educou a si mesma: Tu a criaste, e nem o pai e nem a mãe sabiam como ela seria, ao nascer deles. E a instruíste no temor de Ti sob o cajado de teu Cristo.”
– Confissões – Santo Agostinho
Alguns dizem que é possível que a Santa Mãe de Deus tenha tido ciência em vez de ignorância desde sua concepção. No entanto, neste texto, não usarei minhas palavras para apoiar apenas uma possibilidade, mas sim para esclarecer a certeza dessa verdade e trazer à luz mais uma das grandes coisas que o Todo-Poderoso fez por nossa Santíssima Mãe, como ela mesma disse:
“Pois o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor.”
– Evangelho de São Lucas Cap 1, vers. 49
Tudo o que é grande deixa rastros de sua grandeza que nos servem como sinais para que possamos reconhecer e encontrar tal coisa. Assim, da mesma forma que a fumaça é sinal de fogo e as primeiras folhas são sinais da primavera, a pureza e a falta de manchas também são sinais de sabedoria.
No início, os homens estavam nus e não sentiam vergonha, pois a desordem do pecado ainda não havia se introduzido em suas almas. Mas antes disso, os homens (Adão e Eva) não apenas viam a nudez sem o olhar da concupiscência, mas também tudo o que os rodeava. Não há outra explicação para isso, senão o estado de graça. No entanto, após a queda, a chamada mãe de todos os viventes nos trouxe uma doença que nos subordina a todo tipo de pena neste mundo, não apenas a dor, o cansaço e a morte, mas também a ignorância. Ela nos privou da sabedoria que foi concedida a eles, que nasceram das mãos de Deus cientes de tudo o que viam. Assim, essa dita mãe de todos os viventes se tornou também a mãe da perdição.
“Pela alma corrompida de uma mulher entrou a doença. E do corpo íntegro de outra mulher veio a saúde.”
– A Doutrina Cristã – Santo Agostinho
Deus, que age sempre ajustando elementos semelhantes às coisas semelhantes (similem similibus), não poderia proceder de outra maneira na formação de Nossa Senhora. Não é razoável que a mãe da perdição tenha nascido sem mancha e dotada de razão, enquanto a mãe da salvação, também sem mancha, tenha nascido ignorante. Portanto, nascendo sem mancha, Nossa Senhora teve recuperada aquilo que Eva negou a seus filhos, isto é, a sabedoria. Eva rejeitou a sabedoria, enquanto Nossa Senhora concebeu a Sabedoria. Enquanto os olhos de Eva cobiçavam a oferta da serpente, os olhos de Nossa Senhora só se voltavam para o Espírito Santo.
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“São pombas teus olhos escondidos sob o véu.”
– Cânticos dos Cânticos Cap 4, vers. 01
Aqueles que veem os caminhos de Deus são humildes, como nos ensina São Bento: “O primeiro grau da humildade é a obediência sem demora.” (A Regra de São Bento) Eva desobedeceu a Deus e comeu do fruto da perdição, enquanto Santa Maria se tornou obediente a Deus e gerou o fruto da salvação.
“Nascido de uma mulher, ele libertou aqueles que tinham sidos enganados por uma mulher”
– A Doutrina Cristã – Santo Agostinho
Por fim, é absurda a comparação com Eva, uma vez que esta foi criada como adulta, enquanto Nossa Senhora passou pela infância. Se acreditamos que Deus afastou de Nossa Senhora as penas inúteis e permitiu que ela sofresse apenas as penas úteis, como os sofrimentos temporais mencionados: dor, cansaço e morte, então podemos entender que ela mereceu ascender ao céu e imitar perfeitamente a Cristo. Se acreditamos que o amor de Nossa Senhora foi tão grande que ela é chamada de imitadora perfeita de Cristo, então precisamos escolher: ou a Santa Mãe imita perfeitamente a Cristo, nascendo como seu filho amado, dotada de ciência, ou não imita perfeitamente a Cristo. Ora, vemos no Cântico dos Cânticos o seguinte:
“Eu sou do meu amado.
E meu amado é meu
O pastor das açucenas.”
Temos aí mais do que primeiras folhas indicando o sinal da primavera, mas sim todo um jardim formado indicando um fato: Nossa Senhora é toda de Cristo e Cristo é todo de Nossa Senhora. Sendo assim, concluo que a Santa Mãe o imitou por completo, abraçando não só a dor, o cansaço e a morte, mas também a sabedoria.
“Deus me criou, primícias de sua obra, de seus feitos mais antigos.
Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes da origem da terra.”– Provérbios Cap. 8, vers. 22 e 23
Muito ainda poderia ser dito sobre a sabedoria daquela que é Sede da Sabedoria. Poderia até citar Salmos, explorar a questão da imitação perfeita ou aprofundar-me no fato de que, do mesmo modo que Nosso Senhor não poderia ter nascido de um corpo maculado, também não poderia ter nascido de um corpo desprovido de ciência. Contudo, creio que o presente escrito já basta para os homens doutos e dá um caminho para os mais leigos.
Encerro com mais uma citação do Santo Doutor que além de elucidar o que estou tentando dizer, muito se relaciona com o trecho de provérbios supracitado:
“Com efeito, ainda que não encontremos tempo antes dela, porque antes de tudo foi criada a sabedoria – não, é claro, aquela Sabedoria que é em todo coeterna e igual a ti, nosso Deus, seu pai, e pela qual tudo foi criado e que é o princípio no qual fizeste o céu e a terra; mas, por certo, a sabedoria que é criada, ou seja, a natureza intelectual que é luz pela contemplação da Luz: pois ela também é chamada sabedoria, ainda que criada. Mas a mesma diferença que corre entre luz que ilumina e que é iluminada corre entre sabedoria que cria e essa, que é criada, assim como entre justiça que justifica e justiça que é produzida pela justificação (de fato, disse um servo teu: para que nos tornemos justiça de Deus nele mesmo). Logo, se antes de tudo foi criada uma sabedoria que é criada, mente racional e intelectual de tua cidade, nossa mãe, que está no alto e é livre e eterna nos céus…”
– Confissões – Santo Agostinho
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